segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Rémedio da Roma Antiga

Pesquisadores italianos encontram, em barco naufragado há mais de 2 mil anos, amostras de comprimidos provavelmente usados para tratar infecções nos olhos. A rara descoberta mostra como a medicina contava com sofisticadas formulações já no século 2 a.C.

Antigos navios naufragados podem esconder valiosos tesouros. É o caso do Pozzino, barco afundado há mais de 2 mil anos na costa italiana. O que cientistas encontraram na embarcação, contudo, poderia decepcionar aqueles em busca de moedas, joias ou objetos de ouro. O conteúdo de um pequeno pote recuperado pelos pesquisadores da Superintendência de Patrimônio Arqueológico da Toscana é uma maravilha de outro tipo: seis comprimidos que se revelaram um remédio utilizado pelos romanos antigos, provavelmente para tratar infecções nos olhos.

A descoberta empolga os especialistas por ser muito rara. Na arqueologia, é difícil encontrar medicamentos milenares, ainda mais conservados de forma a permitir uma análise detalhada de sua composição química. “A maior parte das informações sobre esse tipo de produto vem dos antigos escritores, como Theophrastus (de 371 a 286 a.C.); Plínio, o Antigo; e Dioscórides (ambos do 1º século d.C.)”, explica Gianna Giachi, autora principal do estudo sobre o achado, publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas).

O Pozzino data do período entre 140 a.C. e 130 a.C. e, segundo a pesquisadora, teria sido usado como embarcação de comércio da Grécia para o Mediterrâneo. Seus restos foram descobertos em 1974, mas as escavações arqueológicas só começaram em 1989. Foi quando a equipe italiana encontrou alguns objetos profissionais que indicavam a presença de um médico no navio no momento em que ele naufragou. “Próximo à fechadura de ferro de uma caixa de madeira, que foi completamente destruída, foram encontrados uma lata de estanho e 136 frascos de madeira. Provavelmente, eles foram mantidos no interior da caixa com um pouco de pedra da moratória, uma sonda de ferro e um recipiente de bronze para derramar o sangue usado nas sangrias”, detalha Giachi. Ao abrirem a lata de estanho, os arqueólogos encontraram ainda tabletes em forma de disco quase intactos.

De acordo com a autora, a preservação da medicina do século 2 a.C. foi possível devido à falta de oxigênio dentro das latas em que estavam os comprimidos. Com o material conservado, os pesquisadores puderam analisar um pedaço do tablete e revelar a presença de pólen, aveia, gordura animal e vegetal, resina de pinheiro e, principalmente, compostos de zinco. “Os resultados desse trabalho destacam a continuidade, até os dias de hoje, do uso de compostos de zinco — carbonato e hidrocarbonato — no tratamento de doenças humanas, especialmente nas áreas dermatológicas e oftálmicas”, defende Giachi.

Colírio
Além disso, a pesquisa evidencia o cuidado de quem preparou o composto na escolha de uma complexa mistura de produtos — provavelmente azeite, amido, fibras de linha e resina — a fim de obter o efeito terapêutico desejado e ajudar na preparação e na aplicação do medicamento. As fibras de linho foram identificadas por meio da observação no microscópio de luz e eletrônico e, segundo Giachi, foram úteis para manter o material do comprimido compacto no momento em que fosse aplicado na superfície doente.

Ela acrescenta que, além das substâncias presentes no comprimido, o seu formato de tablete também é uma forte evidência que corrobora com a tese de que se tratava de um remédio para os olhos. “Collyrium, em latim, vem do nome grego kollyrion, cujo significado indica pequenos pães redondos, que é precisamente a forma das pastilhas de Pozzino”, menciona.
Normalmente, costuma-se pensar no colírio como um líquido, entretanto Micheline Marie Meiners, professora de farmácia da Universidade de Brasília (UnB), explica que a forma sólida do medicamento facilita o seu transporte. “Eles poderiam não ter condições de levar muito líquido no barco, então levavam a pastilha. Quando precisassem, podiam dissolver em água e fazer a aplicação no olho”, avalia. Para ela, a descoberta é de grande importância para a farmácia, já que a maioria das evidências da medicina nessa época são decorrentes somente das fórmulas dos remédios descritas em papiros. “Para nós, é muito interessante saber que, há 2 mil anos, já existiam essa forma de pastilha e uma embalagem farmacêutica para conservar melhor o medicamento”, comenta Meiners. Outro aspecto que impressiona a pesquisadora é a presença nas pastilhas de marcas impressas, o que, provavelmente, fazia referência ao médico ou ao boticário que preparou o produto. “Todo comprimido de hoje tem a marca do fabricante, e esse estudo mostra que já havia essa preocupação antes. A marca é importante para mostrar quem preparou aquela fórmula, por motivo de segurança e também para divulgação do profissional”, explica.

Até hoje a farmácia utiliza bastante o zinco como matéria-prima devido à sua propriedade moduladora para a imunidade. Como os marinheiros que permanecem muito tempo a bordo costumam ter frequentemente problema de baixa imunidade, o elemento seria importante para afastar as doenças. Já a resina do pinheiro encontrada nas pastilhas pode ter desempenhado o papel de conservante natural e possibilitado sua preservação por muito tempo. “O que esse achado pode estar demonstrando é que os medicamentos preparados da forma correta e bem conservados podem durar milênios”, ressalta a farmacêutica Meiners.

Fitoterapia

Para Francisco Marshall, historiador e especialista em civilização antiga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o caso do medicamento de Pozzino mostra um conhecimento muito particular e surpreendente dos antigos. “A medicina romana era complexa e poderosa. Possuía muitos ramos e conseguia absorver conteúdos dos vários povos e territórios conquistados, sobretudo do Egito.” Segundo Marshall, há 2 mil anos, a medicina romana e a turca já tinham adquirido muita maturidade científica, com um método que surgiu ligado ao início da astronomia e da astrologia. “Depois, esse método reapareceria na alquimia. O mundo grego, por exemplo, foi marcado por vários centros médicos, com um conjunto de teorias e uma série de tratamentos diferentes. Havia uma diversidade de escolas muito grande”, acrescenta.

Sobre a estruturação do conhecimento farmacêutico e médico, Micheline Meiners conta que foram os romanos, os gregos e os árabes que mais desenvolveram os remédios no formato adotado no ocidente. “A estruturação oriental é diferente, mas também é muito forte. O homem sempre buscou a cura para as suas doenças por meio da fitoterapia. Em cada grupo, seja de indígenas, romanos, gregos ou chineses, sempre há uma pessoa com o poder da cura. Mas alguns grupos desenvolveram um conhecimento um pouco menos empírico do que outros”, afirma.

Meiners pondera que, hoje, a farmácia não utiliza mais essas fórmulas naturais, já que a revolução industrial mudou a terapêutica e inseriu uma corrente em que os medicamentos são feitos a partir de produtos químicos. “Antes, existia muito remédio de origem vegetal e mineral. Com a industrialização, teve início o estudo das estruturas químicas e, no século 20, começou a sintetização dos compostos. Hoje, nós isolamos os produtos e combinamos moléculas para conseguir estruturas sintéticas. É a evolução da ciência por meio da química.”
Atualmente, os comprimidos encontrados no Pozzino e todos os outros materiais coletados estão conservados na Toscana, no Museu Arqueológico do Território de Piombino. Segundo Gianna Giachi, o próximo objetivo é analisar outros produtos antigos para comparar os resultados obtidos com os ingredientes que estavam disponíveis na época.

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